Análise Completa à Luz da Lei 14.754/2023 e Normas da Receita Federal
A Lei nº 14.754/2023 trouxe, pela primeira vez na legislação brasileira, uma definição expressa do instituto do trust. Conforme o art. 12, inciso I, da referida Lei, considera-se trust a "figura contratual regida por lei estrangeira que dispõe sobre a relação jurídica entre o instituidor, o trustee e os beneficiários quanto aos bens e direitos indicados na escritura do trust".
O trust é uma estrutura jurídica típica dos países de common law (como Reino Unido, Estados Unidos, Ilhas Cayman, Jersey, etc.), inexistente no ordenamento jurídico brasileiro, que pertence à tradição do civil law. Conforme ensina a doutrina, "a estrutura do trust, antes vista como o auge da proteção patrimonial internacional, está sendo reavaliada no Brasil" após as novas regras tributárias.
• Instituidor (Settlor): pessoa física que destina bens e direitos de sua titularidade para formar o trust (art. 12, II, Lei 14.754/2023)
• Administrador (Trustee): pessoa física ou jurídica com dever fiduciário sobre os bens, responsável por manter e administrar esses bens de acordo com as regras da escritura (art. 12, III)
• Beneficiário (Beneficiary): uma ou mais pessoas indicadas para receber os bens e direitos objeto do trust, acrescidos de seus frutos (art. 12, IV)
• Escritura do Trust (Trust Deed): ato escrito de manifestação de vontade do instituidor que rege a instituição e funcionamento do trust (art. 12, VI)
• Carta de Desejos (Letter of Wishes): ato suplementar que pode prever regras de funcionamento e distribuição de bens (art. 12, VII)
A Lei 14.754/2023 adotou o chamado regime de transparência fiscal para os trusts, segundo o qual os bens e direitos objeto do trust são tratados como se ainda pertencessem ao instituidor ou ao beneficiário, conforme o caso, para fins tributários. Isso significa que a estrutura do trust é "desconsiderada" para efeitos fiscais brasileiros.
Conforme análise doutrinária: "Este é o regime de transparência criado pela Lei 14.754/23 para os trusts. O caso submetido à consulta trata de um trust irrevogável e discricionário constituído no exterior por uma offshore."
O art. 10 da Lei 14.754/2023 estabelece regras fundamentais sobre a titularidade dos bens:
A Receita Federal do Brasil regulamentou a matéria por meio da IN RFB nº 2.180, de 11 de março de 2024, que dispõe sobre a tributação da renda auferida por pessoas físicas residentes no País com investimentos no exterior, incluindo trusts.
Segundo o art. 41 da IN 2.180/2024, os bens e direitos do trust no exterior serão considerados de titularidade do settlor após a instituição do trust, devendo ser declarados diretamente pelo titular na Declaração de Ajuste Anual (DAA).
Conforme o art. 10, §3º da Lei 14.754/2023, os rendimentos e ganhos de capital relativos aos bens e direitos objeto do trust serão:
Conforme a Lei 14.754/2023, os rendimentos de aplicações financeiras no exterior passaram a ser tributados com alíquota fixa de 15% sobre os rendimentos auferidos. Para lucros de entidades controladas no exterior, aplica-se a mesma alíquota de 15%.
Regime anterior: Antes da Lei 14.754/2023, havia diferimento da tributação até o efetivo recebimento dos valores pelo contribuinte brasileiro
Regime atual: Tributação anual obrigatória, independentemente de distribuição, com base no regime de competência
Caso o trust detenha uma controlada no exterior (offshore), esta será considerada como detida diretamente pelo titular dos bens e direitos objeto do trust, aplicando-se as regras de tributação de investimentos em controladas no exterior previstas na Seção III da Lei 14.754/2023.
Nos termos do art. 10, §2º, a mudança de titularidade sobre o patrimônio do trust será considerada como transmissão a título gratuito pelo instituidor para o beneficiário:
A Lei 14.754/2023 permitiu, excepcionalmente, que os contribuintes optassem por atualizar o valor dos bens e direitos no exterior para o valor de mercado em 31/12/2023, tributando a diferença à alíquota definitiva de 8%. O prazo para pagamento foi até 31 de maio de 2024.
Em abril de 2025, a Receita Federal publicou a Solução de Consulta COSIT nº 75/2025, que estabeleceu entendimento polêmico sobre trusts irrevogáveis e discricionários:
A Receita Federal entende que, para fins da Lei 14.754/2023, o instituidor do trust é sempre a pessoa física que efetivamente transferiu os bens. No caso de trust constituído por offshore, a pessoa física controladora da offshore é considerada a verdadeira instituidora.
Além disso, em trusts irrevogáveis e discricionários, a titularidade é transferida aos beneficiários desde a constituição do trust, antecipando o fato gerador tributário.
O instituidor ou beneficiário deve:
O ITCMD é um imposto estadual, previsto no art. 155, I, da Constituição Federal. A incidência sobre doações e heranças envolvendo o exterior foi objeto de intenso debate jurídico nos últimos anos.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 851.108 (Tema 825), firmou a seguinte tese:
Tese fixada: "É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a edição da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional."
Isso significa que, até a edição de lei complementar federal, os estados não podem cobrar ITCMD sobre doações de doador residente no exterior ou sobre heranças de bens situados no exterior.
A EC 132/2023 alterou a Constituição Federal para permitir a cobrança do ITCMD em situações envolvendo o exterior, definindo competência aos estados:
• Quando o doador residir ou tiver domicílio no exterior: compete ao estado onde o donatário tiver domicílio
• Quando o de cujus era residente ou domiciliado no exterior: compete ao estado onde era domiciliado o sucessor ou legatário
• Quando os bens estiverem situados no exterior: compete ao estado onde era domiciliado o de cujus ou doador
O PLP 108/2024, em tramitação no Congresso Nacional, regulamenta as normas gerais do ITCMD conforme a Reforma Tributária. O projeto prevê expressamente a incidência de ITCMD sobre bens e direitos afetados em trust no exterior.
Segundo análise do escritório Mattos Filho: "O texto-base do segundo Projeto de Lei Complementar (PLP) da Reforma Tributária, o PLP 108/2024, prevê a incidência de ITCMD sobre os bens e direitos afetados em trust no exterior."
A Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, por meio da Resposta à Consulta Tributária nº 25.343/2022, manifestou entendimento de que:
A distribuição de bens de trust no exterior para beneficiário residente em São Paulo caracteriza doação sujeita ao ITCMD, com competência do Estado de São Paulo.
Esse entendimento é questionado pela doutrina, pois "absolutamente não consta na norma" estadual, sendo uma interpretação extensiva do Fisco paulista.
Atualmente, há uma "janela de oportunidade" enquanto não editada a lei complementar federal exigida pelo STF. Contudo:
O quadro abaixo apresenta a comparação entre a sucessão causa mortis tradicional e a sucessão via trust constituído no exterior, considerando pessoa com herdeiros e grande patrimônio no exterior.
| ASPECTO | SUCESSÃO TRADICIONAL | SUCESSÃO VIA TRUST |
|---|---|---|
| 📌 Momento do Fato Gerador (IR) | Falecimento do titular. Rendimentos tributados anualmente durante a vida. | Rendimentos tributados anualmente pelo instituidor enquanto vivo. Após falecimento ou em trust irrevogável, tributação passa ao beneficiário. (Art. 10, §3º, Lei 14.754/2023) |
| 💵 Alíquota IR sobre Rendimentos | 15% sobre rendimentos de aplicações financeiras no exterior (Lei 14.754/2023) | 15% sobre rendimentos, independentemente de distribuição. Regime de competência anual. (Art. 2º, Lei 14.754/2023) |
| 📊 Ganho de Capital na Transmissão | Tributação sobre diferença entre valor de mercado e custo de aquisição. Possibilidade de atualização pelo valor de mercado na declaração de espólio final. | Transmissão considerada a título gratuito (doação ou herança). Pode gerar ganho de capital na transmissão ao beneficiário. (Art. 10, §2º, Lei 14.754/2023) |
| 🏛️ ITCMD - Situação Atual | NÃO INCIDE sobre bens no exterior até edição de lei complementar federal (RE 851.108/STF) | NÃO INCIDE - mesma regra aplicável. Estados não podem cobrar sem LC. Contudo, SP já tenta cobrar (RC 25.343/2022) |
| 🏛️ ITCMD - Cenário Futuro (PLP 108/2024) | INCIDIRÁ com alíquotas progressivas de até 8%. LC definirá competência estadual. | INCIDIRÁ EXPRESSAMENTE sobre bens em trust. O PLP 108/2024 prevê tributação específica de trusts. Pode haver dupla incidência: na constituição (se irrevogável) + na morte. |
| ⏰ Efeitos Imediatos da Constituição do Trust | N/A - não há constituição de trust | Trust Revogável: bens permanecem com instituidor para fins fiscais. Trust Irrevogável: RFB entende que há transferência imediata aos beneficiários (SC COSIT 75/2025), gerando possível doação tributável + IR sobre ganho de capital. |
| 👤 Responsável pelos Tributos (Após Constituição) | Titular dos bens (durante vida) → Espólio → Herdeiros | Instituidor (se trust revogável ou enquanto vivo). Beneficiário (se trust irrevogável ou após falecimento do instituidor). A obrigação existe mesmo sem receber recursos do trustee (Art. 10, §8º, Lei 14.754/2023) |
| 📋 Obrigações Acessórias | Declaração anual de bens no exterior (CBE se > US$ 1 milhão) | Declaração individualizada dos bens do trust na DAA (não mais declarar o trust em si). Obrigação de alterar escritura do trust para incluir cláusula de cooperação fiscal. (Art. 11, Lei 14.754/2023) |
| ⚡ Processo Sucessório | Inventário obrigatório no Brasil. Pode haver inventário também no país dos bens. Processo pode ser demorado e custoso. | Dispensa inventário no país do trust. Bens transferidos conforme escritura. Porém, no Brasil ainda pode ser exigido inventário para fins fiscais e de registro. |
| 🛡️ Proteção Patrimonial | Bens respondem integralmente por dívidas do titular | Potencial segregação patrimonial em jurisdições que reconhecem o trust. No Brasil, não há blindagem - bens considerados do instituidor/beneficiário para fins fiscais. |
| 💼 Custo de Manutenção | Custos regulares de manutenção dos investimentos | Custos adicionais: trustee fees, compliance fiscal no Brasil, eventual assessoria jurídica permanente, custos de adaptação da escritura. |
| 🔮 Risco de Interpretações Adversas | Regras mais consolidadas e previsíveis | ALTO RISCO: RFB pode adotar interpretações desfavoráveis (ex: SC COSIT 75/2025). Legislação nova com lacunas. Possíveis autuações retroativas. |
| TIPO DE TRUST | TITULAR PARA FINS FISCAIS | RESPONSÁVEL PELO IR | FATO GERADOR DE ITCMD |
|---|---|---|---|
| Revogável | Instituidor | Instituidor (enquanto vivo) | Somente na morte ou distribuição |
| Irrevogável | Beneficiário (desde a constituição, conforme SC COSIT 75/2025) | Beneficiário (desde a constituição) | Na constituição (doação) + possível nova incidência na morte do instituidor |
A SC COSIT 75/2025 estabeleceu que, em trusts irrevogáveis e discricionários, a titularidade dos bens passa aos beneficiários desde a constituição do trust, e não apenas no momento da distribuição ou morte do instituidor. Isso gera:
📚 Fonte: Solução de Consulta COSIT nº 75/2025; Conjur - "Limites da transparência fiscal: crítica à SC Cosit 75/25 sobre trust discricionário" (22/05/2025)
Quando o trust é constituído por uma offshore (e não diretamente pela pessoa física), a RFB entende que deve-se "olhar através" (look through) da estrutura para identificar a pessoa física controladora como verdadeiro instituidor. Isso significa que estruturas de planejamento com múltiplas camadas podem ser desconsideradas.
📚 Fonte: SC COSIT 75/2025; B18 Advogados - "Solução de Consulta COSIT nº 75/2025, Transparência Fiscal e a tributação de trusts irrevogáveis" (07/05/2025)
O art. 10, §8º da Lei 14.754/2023 é explícito: a inobservância das obrigações pelo trustee ou a impossibilidade de obter recursos não afastam o dever de cumprimento das obrigações tributárias. Assim, o contribuinte brasileiro pode ser obrigado a pagar imposto sobre rendimentos que nunca recebeu efetivamente.
📚 Fonte: Art. 10, §8º, Lei nº 14.754/2023; JOTA - "A polêmica tributação de beneficiários de trusts" (08/05/2025)
Com a aprovação do PLP 108/2024 e a posição de fiscos estaduais como o de São Paulo, há risco de:
📚 Fonte: RC SEFAZ-SP 25.343/2022; Mattos Filho - análise do PLP 108/2024 (13/08/2024)
A EC 132/2023 definiu regras de competência estadual para ITCMD em operações internacionais, mas pode haver conflito quando beneficiários residem em estados diferentes. Isso gera insegurança sobre qual estado pode cobrar e risco de bitributação.
📚 Fonte: DMGSA Advogados - "ITCMD – Mudanças na EC 132/2023 e a tributação sobre doações de bens por doador residente no exterior" (20/12/2023)
O art. 10, §6º da Lei 14.754/2023 exigiu que o instituidor ou beneficiário providenciasse, em até 180 dias da publicação da Lei (ou seja, até junho de 2024), a alteração da escritura do trust para incluir cláusula obrigando o trustee a cumprir a legislação brasileira. O não cumprimento pode gerar questionamentos sobre a regularidade do trust.
📚 Fonte: Art. 10, §6º, Lei nº 14.754/2023
Trusts constituídos com finalidade predominantemente fiscal, especialmente após a Lei 14.754/2023, podem ser questionados pela RFB como estruturas de evasão fiscal, especialmente se:
📚 Fonte: UFRGS - "Empresas Offshore e os Limites do Abuso de Direito" (25/09/2024)
Trusts constituídos antes da Lei 14.754/2023 podem enfrentar questionamentos sobre a data de transferência de titularidade, especialmente em trusts irrevogáveis. A RFB pode entender que a transmissão ocorreu no passado, gerando cobranças retroativas de ITCMD e IR.
📚 Fonte: Migalhas - "A visão turva do fisco sobre o regime transparente aplicável aos trusts" (17/06/2025)
O Brasil não reconhece o trust como instituto jurídico válido internamente (apenas para fins tributários a partir de 2023). Isso pode gerar problemas práticos como:
📚 Fonte: JOTA - "O instituto dos trusts estrangeiros nos países de civil law" (07/08/2025); Conjur - "Trusts: finalmente a legislação brasileira tocou no nome deles" (24/03/2024)
O art. 13 da Lei 14.754/2023 determina que as disposições sobre trusts aplicam-se também a demais contratos regidos por lei estrangeira com características similares que não forem enquadrados como entidades controladas. Isso amplia significativamente o alcance da norma para fundações privadas, Anstalts, e outras estruturas.
📚 Fonte: Art. 13, Lei nº 14.754/2023
A Lei 14.754/2023 representou uma mudança paradigmática no tratamento tributário dos trusts no Brasil. O regime de transparência fiscal eliminou a principal vantagem que existia anteriormente: o diferimento da tributação. Com as novas regras:
O trust ainda pode ser vantajoso quando:
Cada situação patrimonial e familiar é única. É imprescindível análise por advogados especializados em direito tributário internacional e planejamento sucessório antes de constituir ou manter um trust.
Trusts já constituídos devem ser revisados para verificar conformidade com a Lei 14.754/2023 e adequação da escritura conforme art. 10, §6º.
Manter documentação completa sobre o propósito negocial do trust, custos de aquisição dos bens e histórico de rendimentos para eventual fiscalização.
Monitorar a tramitação do PLP 108/2024 e eventuais novas Soluções de Consulta da RFB que possam impactar a tributação.
Avaliar estruturas alternativas como doação em vida com reserva de usufruto, testamentos, holdings familiares, seguros de vida, entre outras opções que podem atingir objetivos similares com menor complexidade.
A constituição de trust no exterior após a Lei 14.754/2023 não oferece mais vantagens tributárias significativas para residentes fiscais brasileiros. Pelo contrário, pode gerar complexidade operacional, custos adicionais e riscos de interpretações desfavoráveis pela Receita Federal.
A decisão de constituir ou manter um trust deve ser baseada em objetivos não fiscais (sucessórios, de governança, proteção de beneficiários vulneráveis) e deve considerar cuidadosamente os riscos envolvidos, especialmente à luz da SC COSIT 75/2025 e do cenário de incerteza quanto ao ITCMD.
Nota: Este material tem caráter informativo e não substitui assessoria jurídica especializada. As informações refletem o cenário normativo e jurisprudencial até novembro de 2025.